terça-feira, 9 de junho de 2020

8Tenta e 3rês anos

Escrevi observando a minha mãe faltando poucos dias pra ela chegar aos oitenta e três anos. Olhando como espectador dá a impressão que os anos estão ficando pesados pra ela. Acho que o tempo está confuso: ao mesmo tempo que ele passa rápido parece que ele passa se arrastando, como sombra dela. Escrevi como que vendo o tempo literalmente a acompanhando. Escrevi como que me vendo quando tiver 8tenta e tantos anos... se eu chegar até lá.
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Me chamam pra almoçar
Mas nem serviram o jantar
Cadê o café da manhã?
Sendo que já é tarde
Vejo fotos amareladas
Conheço aquelas caras
Acho que as vi ontem
Não sei de onde

Tomo remédio toda hora
Dizem que é pra memória
Acho que é história
Eles acham que estou lelé
Já tomei meu café?
Estou aqui desde quando?
Acho que desde ontem
Mas só estou de passagem
Vou arrumar minha bagagem
Eles pensam que vou dormir aqui
Mas eu sei pra onde eu tenho que ir
Vou embora pra minha casa
De hoje não passa
Meus documentos estão na gaveta
Cadê minha carteira?
Estava aqui desde segunda-feira
O que eu estava procurando?
Ah! Achei meu chinelo de pano
Como meu cabelo está branco
Estava pretinho há um ano
Vou tomar meu banho

Olho no espelho e vejo uma figura
Quanta ruga
Minha pele parecia uma seda pura
Agora tenho minhas dúvidas
Se sou eu naquela moldura
Minhas rugas parecem um mapa
Na realidade são marcas
De coisas vivenciadas
Tatuadas bem na cara

Cadê minha energia?
Está acabando minha bateria
A amiga bengala
Virou uma aliada
Não posso sofrer uma queda
A bengala é minha terceira perna

Que dia é hoje
É manhã ou de noite?
Já é amanhã
Ou ainda é hoje?
É segunda?
Essa semana não acaba nunca
Ou já começou e eu estou caduca?
Só tenho perguntas
As respostas se foram
E eu vou pra onde?
Só quero ir pra casa
Ficar lá até meu dia vier
Até quando Deus quiser
Até o tempo for nada
Até a eternidade for tudo
Até minha recompensa chegar
Aí eu vou falar pra mim:
Valeu a pena perseverar até o fim
Junho 2020


Valeu a pena perseverar até o fim


Saudade

Saudade é sentimento nobre
Que dá até em coração de pobre

Saudade aperta a gente
Espreme até sair um caldo quente
Escorre pelo rosto já marcado
E pinga no chão já outrora molhado

Saudade é igual nó de gravata
Que não desata
E aperta a garganta já apertada
E toda congestionada

Às vezes é bom sentir saudade
É sentimento puro sem maldade
Devolve a gente pro passado
E leva a gente pro presente

Dá saudade na distância
Tão longe quanto a infância
Dá saudade quando se está perto
Mesmo assim dá um aperto

Há um comentário da antiguidade
Talvez num diário pra posteridade
Falaram que saudade não tem idade
Eu concordo meio desconfiado

Saudade da poltrona vazia
De quem sentava lá e sorria
Sentava lá e contava causos
E não pedia aplausos

Saudade da neve branca
Branca de Naves
De quando aprendemos a verdade

Saudade do bolinho frito
Do feijão cozido
Do ombro amigo
Daquele sorriso
Do conselho dito
Daquele casal querido
Daquele vestido comprido
Do terno fino
Do vinho tinto
De um passado longínquo
De um presente vizinho
Do ano de 85
E depois
De quando éramos cinco

Saudade de tempos atrás
Que não volta mais
Mas que no futuro será revivido
Num novo mundo prometido
Junho 2020